sexta-feira, 10 de agosto de 2012

POST 1758: O EMPREENDEDOR ESTÁ MORRENDO?

Precisamos dos pioneiros, dos malucos inconsequentes, dos artistas incompreendidos, dos que se recusam a entrar nos moldes e padrões pré-estabelecidos.

Vivemos em uma sociedade que se desenvolve mais rapidamente a cada dia. Vemos traços desse desenvolvimento e evolução em todas as coisas que nos cercam diariamente. Deixe-me citar alguns exemplos bastante próximos da nossa realidade.

Antigamente, jogar futebol de forma profissional exigia talento suficiente para o jogador se tornar um grande atleta. Hoje qualquer jogador mediano pode se transformar em um astro. As tecnologias e a ciência do esporte trouxeram técnicas cada vez mais avançadas de condicionamento físico para transformar qualquer pessoa em uma verdadeira máquina de jogar bola. Da mesma forma, as técnicas e as táticas vêm se desenvolvendo tanto a ponto de muitos considerarem que o futebol brasileiro, conhecido mundialmente como exemplo do futebol arte, está com os dias contados. As demonstrações dadas pelo futebol espanhol e alemão nas finais da Eurocopa mostraram como o desempenho humano, aliado às técnicas afiadas de movimentação e organização no campo, jogadas ensaiadas exaustiva e disciplinadamente e táticas cada vez mais eficazes dão evidentes sinais de que a arte vai ser sobrepujada. O futebol brasileiro não é sequer comparável ao futebol europeu. Muitos acreditam que o Brasil não tem condições de disputar mais nenhuma Copa.

Além disso, a profissionalização da gestão chegou aos clubes. Planejamento estratégico, missão, objetivos, gestão por competências, orçamentos e balanced scorecard já não são instrumentos de gestão exclusivos de bancos, indústrias e consultorias. Os clubes estão ficando eficazes, está sobrando dinheiro, estão diversificando produtos e fontes de receita, fala-se de perfil do consumidor, proposição de valor e excelência no desempenho. Isso está acontecendo em todas as áreas que antes não tinham gestão profissionalizada. Médicos geriam hospitais antes. Agora, são administradores. Jornalistas dirigiam redações antes, hoje são administradores. Os professores que conduziam as escolas antigamente estão dando suas posições aos administradores. Estamos vivendo a era da gestão.

Tudo isso é muito bom, não é? São sinais de que o mundo está evoluindo e se tornando melhor. Pouca gente é capaz de criticar esse processo evolutivo. Sabe de outra vantagem deste processo? Quanto maior o uso de técnicas, modelos, ferramentas e instrumentos, menor é a necessidade de ter profissionais altamente qualificados. Um processo bem estruturado, organizado e documentado pode ser seguido por qualquer pessoa com baixa formação educacional. Veja a aviação civil por exemplo. Um piloto de avião hoje não tem nem a metade da competência, conhecimento e experiência dos mesmos pilotos de 20 anos atrás. Por quê? Porque antes não existia tecnologia nem processos estruturados. O piloto, diante de uma emergência ou situação inesperada, contava só consigo mesmo para resolver o problema e não deixar a peteca cair (ou avião). Hoje, se todos seguirem os manuais e fizerem os treinamentos, nada vai dar errado. Os pilotos seguem mecanicamente os procedimentos de verificação e segurança, muitas vezes até sem entender o que estão fazendo. Se alguma coisa dá errado, a solução precisa estar no manual.

Os jornais divulgaram recentemente que o acidente do voo da Air France que saiu do Brasil foi provocado por erro do piloto, provavelmente em alguma situação que não foi prevista. Agora, todos se debruçam nos procedimentos, no treinamento e na tecnologia e verificam todo o processo para, no final, adicionar novas etapas de verificação, novas tecnologias de alerta, novos processos para tentar prever todas as situações. Os bons cientistas de antigamente eram capazes de relacionar fatos, dados, histórias, evidências, buscando ligações, induções, reflexões, e daí, com sua capacidade de cognição, desenvolver hipóteses, postulados e teorias que deveriam ser testadas depois. Hoje, os cientistas já não precisam pensar mais. Preferem jogar os dados em um software estatístico, tentando correlacionar tudo com tudo e ver o que o software traz. Simples assim. Os atendentes de call center não precisam mais entender o problema do cliente, apenas ler scripts, diagnosticando cada situação de acordo com as respostas dadas pelo cliente e assim, proporcionar soluções-padrão, que às vezes não atendem à demanda nem resolvem o problema.

Médicos em início de carreira aprendem a interpretar os sintomas segundo uma cartilha pré-estabelecida e, da mesma forma, eles não só diagnosticam mas prescrevem o tratamento de acordo com o manual. Cada vez mais atividades podem ser organizadas, previstas, estabelecidas, ordenadas, estruturadas e colocadas em prática. Para tudo vão existir manuais, roteiros, scripts e fluxogramas. São os modelos em ação, ferramentas fundamentais para a busca da eficácia de forma contínua e ininterrupta. O sistema eficiente, dentro dessa concepção, é aquele que independe da pessoa, que seja livre de erros e à prova de incompetentes. Do ponto de vista do desenvolvimento de talentos, essas práticas, alimentadas e refinadas continuamente vão gerar nada além de... incompetentes mesmo! Pessoas que só sabem agir dentro das regras, que ficam perdidas se não tiverem um processo para seguir, que esperam a orientação para tomar uma decisão. Essas pessoas paralisam diante de uma situação inesperada, se sentem desconfortáveis em ambientes instáveis e elaboram um modelo mental no qual as coisas precisam acontecer do jeito certo para serem eficientes e reduzir o erro.

Pois bem, claro que isso está acontecendo com empreendedorismo também. A visão romântica do empreendedor antigo que, com o espírito pioneiro, desbravava fronteiras e explorava novas dimensões de negócios, mercados e ramos de atuação está dando lugar ao pragmatismo do perfil empreendedor que Peter Drucker sempre pregou e defendeu: o empreendedor-administrador. A maior parte dos cursos de empreendedorismo que existe no mercado são cursos de quê? Claro, de administração de empresas ou gestão de negócios. Todo negócio precisa ser gerido para não fracassar. Pessoas com perfil empreendedor sem ter algum controle mínimo dos seus números, dos seus processos, das pessoas e do seu mercado está fadado ao fracasso. Uma boa gestão, portanto, alinhada à onda da profissionalização das organizações, é fundamental!

Acontece que um administrador não necessariamente é um empreendedor. E a arte, a experiência e a sabedoria? Serão substituídos por inteligência, conhecimento e padronização? Não se engane, empreendedores precisam de uma boa gestão para sobreviver, mas uma boa gestão não garante o crescimento. Para crescer, fazer algo muito bem não é suficiente, é preciso fazer alguma coisa diferente, pois os modelos padronizados, as técnicas disseminadas amplamente, os benchmarks, as referências, a análise dos dados, a pesquisa de mercado, isso todo mundo faz. Valorizar demais o que está garantindo a sobrevivência pode estar paralisando o crescimento, o que parece um paradoxo, pois os empreendedores procuram aprender técnicas de gestão justamente porque querem crescer. Veja a história dos empreendedores bem-sucedidos e você entenderá o que estou falando. Embora todos, em algum momento, tenham precisado aprender técnicas de gestão para melhorar o seu negócio, nenhum deles abandonou o seu DNA, o que faz a diferença no seu negócio.

Por isso ainda precisamos dos pioneiros, dos malucos inconsequentes, dos artistas incompreendidos, dos que se recusam a entrar nos moldes e padrões pré-estabelecidos. Não vamos deixar as técnicas testadas e provadas aniquilarem a intuição. Não podemos permitir que a criatividade seja suplantada pela modelagem. Não vamos deixar a onda da gestão profissional matar a arte de empreender, porque empreender é muito mais do que gerir.

E é por isso que fico incomodado ao ver cada vez mais empreendedores disseminando a importância de administrar bem o negócio como se fosse a panaceia universal, a solução de todos os seus problemas, e afirmando que antes ele não era empreendedor, e agora que aprendeu a gerenciar seu negócio é que se sente empreendedor. Acredito que ele precise ouvir o seu estômago, em vez do seu cérebro, de vez em quando – tanto quanto o Brasil precisa acreditar no futebol arte como forma de surpreender quem está acostumado a jogar do jeito “certo”. Aprenda as técnicas modernas, mas não mate seu potencial empreendedor, porque esse é o seu diferencial. São suas características pessoais que o tornam diferente dos demais e podem representar seu fator de competitividade, seja ela a criatividade, o relacionamento pessoal, a intuição, a visão, a inspiração ou qualquer outra coisa que, ao contrário das técnicas e métodos, não são facilmente aprendidos e disseminados. Ser igual aos outros só coloca você no jogo. Mas, depois que entrou no jogo, seu desafio é ser diferente.

Como dizia Raul Seixas, “eu prefiro ser essa metamorfose ambulante do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo”.


Por Marcos Hashimoto é professor de empreendedorismo da ESPM, consultor, palestrante e um dos autores do livro Práticas de Empreendedorismo: Casos e Planos de Negócios, Editora Elsevier. 

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