Muitas vezes usamos certas palavras para fazer classificações subjetivas, comparando determinado objeto com padrões e gostos pessoais. Quando digo que fulana é bonita ou beltrano é alto, refiro-me aos meus padrões particulares de beleza e altura, respectivamente. Padrões estes que, em maior ou menor grau, sofrem influência do senso comum.
Estas classificações podem fazer alusão, também, a determinadas referências. Se eu digo, por exemplo, que fulana é mais bonita do que a Susan Boyle ou que beltrano é mais alto do que o Nelson Ned, nada de muito relevante foi dito.
Um pequeno gigante ou um enorme anão?
Se você não souber que padrões eu estou utilizando, minhas comparações não servirão de muita coisa. De modo semelhante, se meus padrões forem muito baixos (ou muito altos), em relação àquilo que estou classificando, minha informação poderá ser igualmente irrelevante.
Esta breve introdução serve como base para explicar uma das maiores farsas do atual governo, cujas desastrosas consequências estão logo ali na esquina - e você só não está vendo porque tem se sentido seguro e confortável com os noticiários. Pois eu vou lhe dar uma péssima notícia.
Quase tudo o que temos lido nos jornais sobre a economia do país apoia-se sobre o espantoso crescimento da classe média brasileira.
Que ela é o maior sintoma da recuperação do país, que é reflexo de uma política econômica voltada aos menos favorecidos e que o seu consumo não deixará que o país embarque na crise mundial.
Os jornais só falam disso. Cada dia dão conta de mais empresas e mais investimentos indo atrás deste enorme contingente de consumidores e seu estrondoso potencial de compra. De TVs de LED a celulares último tipo, notebooks e tablets, toda sorte de quinquilharias começa a equipar as casas das Classes C, D e E.
Tudo parece lindo. Só que não.
No excelente Not Exactly: In Praise of Vagueness, (Oxford University Press, New York, 2010), Kees van Deemter explica que "quando eu digo que X é grande, estou dizendo que X está acima do meu limite de grande. Se você sabe algo sobre o meu limite, isso dirá algo sobre X; mas se você sabe algo sobre X, então isso dirá algo sobre o meu limite"1.
Um exemplo idiota seria dizer que eu acho que todo mundo acima de 99 centímetros é alto. Isto provavelmente classificaria mais de 95% da população adulta como alto - embora este não fosse o caso, definitivamente. Ninguém precisaria se espantar com isso, no entanto, porque a minha definição seria algo pessoal que, logicamente, não mudaria a opinião de ninguém.
Mas e se eu fosse um legislador com o poder de dizer, arbitrariamente, que medida deveria ser considerada como limite para que uma pessoa tivesse o status de alta? E que isso, de alguma forma, tivesse algum impacto em uma política pública?
Pois o que o governo fez com a definição de classe média é exatamente a mesma coisa. Na semana passada, a Secretaria de Assuntos Estratégicos redefiniu os parâmetros para classificar a classe média.
- EU SOU RYCAAAAAA!!!
Antes de prosseguir aviso-lhe, desde já, que se você não for um catador de papel, então você está na mesma classe social do Eike Batista. E, provavelmente, do seu porteiro.
No fantástico2 Porque conceituar a classe média (sic), a SAE estipula que pertence à classe média quem tiver renda entre R$ 291,00 e R$ 1.019,00. Para que você não ache que eu me enganei nos números, escreverei por extenso: entre Duzentos e Noventa e Um Reais e Um Mil e Dezenove Reais.
Isto engloba 54% da população brasileira. Isto engloba o mendigo que pede esmola no sinal na esquina da minha rua, porque se ele ganhar R$ 10,00 por dia, pode ter uma folga no mês e ainda será classe média.
É esta classe média - leia-se: de mendigos - que sustentará a pujante economia deste país durante uma grave recessão mundial? É esta classe média que deve encher-nos de orgulho por ter uma sociedade (teoricamente) mais justa? Estes valores indicam melhor distribuição de renda?
Claro que não. Mas com estes valores o governo diz que seus resultados são espetaculares. Com estes números o governo diz que nunca antes na história deste país a classe média cresceu tanto. Com estes valores, este governo vai se reeleger.
Porque para este governo, até a mentira é uma questão de referência.
____________________
1. (…) by saying that X is large, I am saying that X is above my threshold for largeness: X > threshold. If you knew my threshold, this tells you something about X, but if you knew X, then it tells you something about my threshold - p 123.
2. Fantástico no sentido de ser algo criado pela imaginação, não por ser extraordinário.
Rodolfo Araújo
Mestre em Administração pela PUC-RJ; Pós Graduado em TI pela FGV-RJ; Bacharel em Comunicação Social pela UFRJ.
Mais de Rodolfo Araújo AQUI
FONTE: Não posso evitar
0 Comentários:
Postar um comentário